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Sensores de odor reinventam o olfato digital e ultrapassam a capacidade do nariz humano

Tecnologia é um exemplo de inteligência artificial integrada à internet das coisas, que começa a transformar moléculas voláteis em dados estruturados, comparáveis, circulando por redes em tempo quase real

17/12/2025Por Roger Finger

Sensores de odor reinventam o olfato digital e ultrapassam a capacidade do nariz humano
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Talvez o olfato seja a última fronteira sensorial no mapa digital. Smartphones exibem câmeras em 4K, capturam áudio imersivo e simulam realidades complexas. Porém ainda ignoram por completo o universo químico, que cerca cada respiração. Essa assimetria já compromete a ambição de qualquer ecossistema verdadeiramente inteligente. A aliança entre a Internet das Coisas e a inteligência artificial começa a transformar moléculas voláteis em dados estruturados, comparáveis, circulando por redes em tempo quase real. O sensor portátil de odores, um exemplo de AIoT (sigla em inglês para Inteligência Artificial das Coisas), emerge como mais do que um equipamento de detecção. Essa tecnologia traduz a entrada da química do cotidiano em um novo domínio cognitivo, no qual máquinas interpretam o mundo com precisão que tende a ultrapassar o nariz humano.

A base desse salto continua profundamente biológica. O epitélio olfatório humano abriga cerca de 347 genes funcionais de receptores de odor, ao lado de algo em torno de 40 milhões de neurônios olfatórios em uma área pequena da cavidade nasal, com capacidade estimada para distinguir aproximadamente 10 mil odores diferentes, segundo síntese da Lumen Learning sobre sistemas sensoriais. O cérebro reconhece cada cheiro como padrão combinatório. Em vez de um receptor por odor, múltiplos receptores ativam-se em conjunto, em proporções específicas, e formam vetores em espaço de alta dimensionalidade. Essa lógica inspira a engenharia de sensores e algoritmos, porque representa cada mistura volátil como assinatura numérica rica, apta a entrar em modelos de IA que classificam, comparam, correlacionam e antecipam.

Narizes eletrônicos bem projetados atacam esse problema finito, o que permite treinar modelos para reconhecer a presença de doenças, contaminantes, fraudes ou degradação de qualidade ao observar deslocamentos discretos na combinação desses “cheiros vetoriais”, um de cada vez. O Brasil já oferece um exemplo contundente desse novo paradigma. Pesquisadores do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco desenvolveram um nariz eletrônico capaz de identificar metanol e outras adulterações em bebidas com margem de segurança acima de 98 %, com tempo médio de resposta em torno de 60 segundos por amostra analisada. O dispositivo utiliza mais de dez sensores químicos combinados a modelos de IA para reconhecer desvios em relação ao perfil olfativo de bebidas legítimas, com exigência de apenas uma gota para calibração e análise. Em um país que ainda lida com intoxicações graves por consumo de álcool clandestino, essa tecnologia deixa o campo do “legal de ter” e assume função de infraestrutura de saúde pública, com aplicações possíveis em totens de autoatendimento em bares, dispositivos portáteis para fiscalização sanitária e até canetas de bolso voltadas ao consumidor comum.

O mesmo princípio se amplia para toda a cadeia de alimentos perecíveis. Artigo publicado em 2025 no jornal científico SN Computer Science descreve um framework inteligente de nariz eletrônico para avaliação da qualidade de alimentos, com matriz de sensores de gases e modelos de aprendizado de máquina. Relata acurácia de 95% para carne e de 97% para peixe, ovos e laticínios ao classificar o frescor em quatro categorias distintas, o que já supera a simples inspeção visual e reduz a dependência exclusiva de análises laboratoriais demoradas. Em escala industrial, isso significa uma revolução silenciosa: câmaras frias, linhas de processamento e centros de distribuição podem operar com sensores olfativos conectados, capazes de disparar alertas automáticos quando um lote se afasta do padrão esperado, antes que o problema chegue ao consumidor ou gere desperdício maciço.

No campo clínico, as implicações se tornam ainda mais profundas. Revisão recente publicada pelo European Medical Journal destaca que uma única respiração humana carrega centenas de compostos orgânicos voláteis, cujas concentrações variam em presença de doenças como câncer de pulmão, patologias neurodegenerativas e distúrbios metabólicos. Descreve narizes eletrônicos clínicos estruturados em três blocos principais, matriz de sensores, sistema de processamento de dados e módulo de interpretação, com algoritmos de reconhecimento de padrões e modelos de IA, arquitetura que consolida a passagem do laboratório para dispositivos mais compactos e portáteis. Em um ensaio de fase II com pacientes em estágio inicial de câncer de pulmão, um desses sistemas alcançou acerto de 86% ao identificar a malignidade de nódulos, desempenho expressivo para uma tecnologia não invasiva.

A mesma revisão menciona estudos que aplicam narizes eletrônicos ao odor da urina para estratificar risco em câncer de próstata, com distinção clara entre pacientes de baixo risco e grupos de risco intermediário ou elevado. Esse movimento já encontra tradução empresarial. A RealNose, empresa norte-americana que desenvolve sensores olfatórios bioprogramáveis, descreve um sistema de machine olfaction que combina biossensores inspirados no epitélio mamífero e modelos de IA para detectar câncer de próstata a partir do cheiro da urina, além de ameaças químicas, explosivos e drogas, com foco explícito em triagens mais rápidas, precisas e escaláveis do que métodos convencionais. A empresa apresenta o dispositivo como nariz eletrônico capaz de atuar em consultórios, hospitais e ambientes de segurança, dentro de um fluxo de uso que integra leitura olfativa, decisão algorítmica e encaminhamento clínico.

Tudo isso se torna possível porque a IoT assume o papel de sistema nervoso distribuído. Sensores de odor deixam posições estáticas em bancadas laboratoriais e passam a ocupar pontos estratégicos ao longo de cadeias produtivas, de linhas de produção a veículos de transporte e ambientes de armazenamento. Em cada ponto, geram leituras sucessivas que incluem data, hora, localização e contexto operacional. Pacotes de dados cruzam redes sem fio até plataformas analíticas, onde modelos de IA detectam tendências, rupturas, anomalias e correlações. Uma fábrica de alimentos, por exemplo, pode observar a evolução do perfil olfativo de um mesmo lote em diferentes etapas, identificar padrões associados a falhas recorrentes e corrigir processos antes que surjam crises de reputação.

O impacto sobre a prática médica segue raciocínio similar. Um hospital que adota narizes eletrônicos em pronto-atendimentos passa a dispor, em teoria, de uma triagem adicional para pacientes com suspeita de doenças respiratórias, metabólicas ou oncológicas. Em vez de depender apenas de relato subjetivo de sintomas e exames caros, o médico ganha um marcador objetivo, respaldado por evidência quantitativa, capaz de orientar prioridades na lista de espera, definir sequência de exames, acompanhar resposta a terapias e monitorar risco em reconsultas. Em regiões com escassez de especialistas, sobretudo em países emergentes, um sensor portátil de odores integrado à nuvem pode funcionar como multiplicador de expertise, desde que venha acompanhado de protocolos clínicos sólidos e marcos regulatórios bem definidos.

Esse novo paradigma também amplia a discussão sobre qualidade ambiental e segurança ocupacional. Ambientes industriais em que trabalhadores se expõem a solventes, gases tóxicos ou partículas voláteis passam a contar com uma camada extra de proteção, porque narizes eletrônicos podem medir, com precisão e frequência elevadas, a presença de compostos orgânicos voláteis em níveis subclínicos, antes de qualquer sintoma perceptível. Em cenários de segurança pública e militar, sensores olfativos transportáveis em mochilas ou drones oferecem vigilância sobre explosivos, agentes químicos e drogas com rapidez infinitamente superior à de inspeções manuais aleatórias.

Muito antes da atual explosão de inteligência artificial, John Amoore já propunha, na década de 1950, um conjunto finito de odores primários capaz de explicar milhares de cheiros percebidos ao combinar essas bases olfativas, em linha com a ideia de cores primárias na visão. Um exemplo inovador que integra IoT e IA é um sensor de odor portátil em feira de inovação realizada neste 2025, no Japão. Capaz de detectar e distinguir cheiros sutis imperceptíveis aos humanos, o sensor replica a olfação. Demonstra como as máquinas podem ampliar a percepção sensorial humana, ao abrir possibilidades para uso em ampla variedade de ambientes. Combina 12 odores-base para, por meio de um único dispositivo e de forma revolucionária, identificar diversos odores distintos, através de um único sensor, baseado na combinação proporcional dessas 12 bases, usando IA. Já inclui alguns imperceptíveis ao olfato humano.

Porém, esse poder AIoT exige freios claros. Perfis olfativos individuais carregam marcas de hábitos pessoais, uso de substâncias, exposição ambiental e presença de doenças, o que transforma o odor em nova categoria de dado sensível. A mesma infraestrutura que protege um bar contra bebidas adulteradas pode, em tese, servir a sistemas de vigilância invasiva. Estruturas regulatórias maduras precisarão tratar a biometria olfativa com seriedade equivalente à de dados genéticos ou registros médicos, com consentimento explícito, propósito definido, limitação de retenção e mecanismos de auditoria independentes. A transparência de algoritmos que interpretam assinaturas químicas e a possibilidade de contestar resultados tornar-se-ão pontos centrais em qualquer debate responsável sobre AIoT olfativo.

Apesar dessas tensões, o saldo global aponta para avanço civilizatório. Cadeias de fornecimento mais seguras, diagnósticos mais precoces, ambientes de trabalho mais saudáveis e processos industriais com rastreabilidade química fina compõem um conjunto de ganhos que dificilmente encontra paralelo em outras tecnologias emergentes recentes. O sensor portátil de odores integrado a IoT e IA representa muito mais do que um novo gadget de consumo: materializa a entrada do olfato no século digital, em regime de mensuração precisa e interoperável. O sentido que tantas culturas relegaram a segundo plano desperta, agora, em máquinas que aprendem a ler a linguagem silenciosa das moléculas. Ao fazer isso com rigor científico e inteligência distribuída, reconfigura a forma como a sociedade entende segurança, confiança e cuidado em tempo real.

Roger Finger é head de Inovação da Positivo Tecnologia

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#AIoT#IoT#nariz#olfato#sensorial

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