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“Em 5 anos teremos um corpo humano virtual completo”

Motivado pela doença rara de sua filha, Steve Levine, diretor da área de modelagem virtual humana da Dassault Systèmes, criou versões virtuais de órgãos humanos e agora se prepara para integrar essas partes de forma totalmente funcional e salvar vidas

25/02/2025

“Em 5 anos teremos um corpo humano virtual completo”
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Por Daniel dos Santos*

Como pai, a vida de Steve Levine, diretor da área de modelagem virtual humana da Dassault Systèmes, trouxe vários desafios e preocupações capazes de atemorizar e desanimar muita gente. Sua filha nasceu com um problema raro de saúde que alterou as câmaras inferiores do seu coração, tornando o órgão menos eficiente para a circulação do sangue, com expectativa de vida da menina significativamente mais curta. Com dois anos ela já tinha um marcapasso no peito.

Um caso tão raro que havia pouquíssima informação disponível para os médicos que cuidavam dela e que simplesmente não havia como prever como ela reagiria aos tratamentos, pelo menos com a tecnologia que existia no momento. Sendo uma doença rara, não havia informação suficiente disponível para tomar decisões baseadas em dados. Foi então que Levine resolveu juntar seu trabalho com a necessidade de salvar a vida de sua filha, dedicando-se ao projeto de criar um gêmeo virtual de um coração.

Em entrevista ao AIoT Brasil durante o evento 3Dexperience World 2025, em Houston, nos EUA, ele contou como foi possível levar a tecnologia de gêmeo virtual do ambiente industrial para a área da saúde, falou sobre como a IA pode ajuda a salvar vidas, que estará no Brasil em breve e que, em cinco anos, seremos capazes de criar um corpo humano virtual completo.

AIoT Brasil – Como surgiu a ideia de criar um corpo humano virtual?
Steve Levine – A ideia do gêmeo virtual humano surgiu do meu trabalho e de outras pessoas e começou há cerca de 12 anos como um esforço pioneiro para ver até onde poderíamos levar nossa plataforma. Quando apresentamos a plataforma 3Dexperience, ela foi o próximo passo na história da empresa, quando buscamos evoluir de ajudar empresas a fazerem ótimos produtos para o que chamamos de produtos alinhados com a vida e a natureza, para construir um mundo mais sustentável, não apenas construindo bons produtos, mas produtos que ajudassem o mundo e as pessoas.

Para experimentar um produto, você tem que ir além de sua forma e aparência, precisa realmente simular seu comportamento. Então, como eu era responsável por entender como a simulação seria capaz de simular não apenas produtos, mas a vida, esse foi um desafio particularmente interessante. Recorri a algumas das minhas próprias experiências pessoais, pois minha filha nasceu com um defeito cardiovascular. Seu coração, ao contrário da maioria das pessoas, tinha os lados invertidos. E esse é um problema muito raro. Você não pode simplesmente alterar isso e esperar que funcione. Mas ela tinha o coração que tinha, e os médicos não tinham muita informação para saber o que fazer. E então a única opção para eles na época era testar coisas nela.

E então eu pensei, bem, o que está mais associado à vida do que um coração humano? E eu sabia que os médicos não tinham ferramentas para entender o que acontecia com a minha filha. Eles não tinham como observar em um ensaio clínico, eles não tinham como testar ou orientar alguém apenas com o que passava em suas cabeças. E em um caso como o da minha filha, que era um em um milhão, os médicos nunca tinham visto isso antes. Por que não podemos construir um gêmeo virtual do coração humano? Fui falar com todos os especialistas, e eles disseram que era muito difícil ou até mesmo impossível.

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AIoT Brasil – Como o coração virtual funciona?
Começamos com a forma, assim como você faria se estivesse projetando um produto. Mas em vez de desenhar as formas, nós as pegamos de imagens de ressonância magnética, tomografia computadorizada. Nós as reconstruímos em objetos tridimensionais. Mas esses são apenas objetos. Então temos que trazer as propriedades do tecido, o sistema de condução elétrica. Com o coração, você tem várias questões físicas. Você tem a mecânica estrutural. É uma bomba eletromecânica. Então você tem um sistema elétrico. Em termos de engenharia, são três estruturas físicas diferentes, elementos para fazer a estrutura, dinâmica de fluidos computacional e elétrica para fazer a condutividade elétrica.

Na verdade, temos três modelos físicos diferentes para fazer isso. É um modelo multiescala. Então, se você está apenas olhando para, digamos, uma válvula artificial, você não precisa saber o que está acontecendo no nível celular. Você só precisa saber o que está acontecendo no nível do órgão. Mas se você está olhando para um medicamento, então você precisa ir até a biologia e a química. Então temos modelos separados onde trazemos as ferramentas biológicas que vêm da nossa marca Biovia para ser capaz de modelar o que está acontecendo com as proteínas interagindo com o DNA e as interações moleculares, que então ditam o que está acontecendo no nível celular.

E então pegamos essas células e as colocamos em um órgão. E pegamos esses órgãos e os colocamos em um corpo. Depois pegamos esse corpo e o colocamos em um grupo. E temos uma metodologia para ir de uma molécula de medicamento a uma população inteira virtualmente.

AIoT Brasil – O que é o Living Heart Project?
Steve Levine – O Living Heart Project foi criado por nós para saber se poderíamos usar nossa nova plataforma de experiência 3D para fazer o que fazemos, por exemplo, com uma empresa aeroespacial, com milhares de engenheiros trabalhando em diferentes locais com diferentes conhecimentos em um mesmo gêmeo virtual. Eles não precisam estar todos em uma sala para colaborar. Pensei: por que não posso fazer isso com os especialistas na área cardiovascular? Cardiologistas, eletrofisiologistas, especialistas em tecidos, hemodinâmica…

Se eu pudesse fazer com que todos trabalhassem juntos virtualmente usando nossa plataforma, talvez nós soubéssemos o suficiente para realmente construir o gêmeo de um coração. E então eu lancei o projeto e consegui convencê-los a trabalhar juntos. E dentro de um ano tínhamos um gêmeo virtual do órgão completamente funcional. Assim descobrimos que nós, humanos, sabíamos o suficiente para sermos capazes de fazer isso. Nós simplesmente não tínhamos o veículo certo. E assim começou nossa jornada para o que temos agora.

AIoT Brasil – E o que já é possível fazer nessa área? Quais outros órgãos já podemos criar?
Steve Levine – Ao longo dos últimos anos aprendemos muito não apenas sobre como fazer, mas como fazer bem, como fazer rápido. Então trabalhamos com o FDA (órgão regulador que faz parte do departamento de saúde dos EUA) para realizarmos testes clínicos completos em corações com pacientes virtuais. Ou seja, você não precisa realmente fazer testes em seres humanos. Você pode testar em órgãos humanos virtuais e então ser capaz de usar isso como seus dados aprovados. E nós publicamos os resultados desse trabalho com o suporte da FDA no ano passado. Fomos de “isso é impossível” para algo que já é aprovado pelos órgãos regulatórios. Agora você pode realmente testar algo em pacientes virtuais e então enviá-lo para aprovação regulatória.

Agora estamos indo além do coração virtual. Temos cérebro, pulmão, fígado, olhos, joelhos, quadris e ombros. Nosso objetivo não é apenas construir cada um dos órgãos, mas agora conectá-los em um sistema. Usando a mesma filosofia de, digamos, um jato, que tem muitos sistemas independentes, o leme, a cauda e os motores estão todos trabalhando juntos.

AIoT Brasil – Quais são os principais desafios técnicos e de engenharia envolvidos na criação de um modelo tão complexo e preciso como o coração vivo?
Steve Levine – Há uma série de perguntas aqui. Fomos muito abrangentes em termos de engenharia, biologia e tudo mais, todas as peças que precisam ser usadas para compor o coração. E então ele é basicamente construído do zero. Se os médicos daqui a cinco ou dez anos vão usar essas ferramentas, temos que treiná-los hoje. O treinamento médico leva muito tempo, então você tem que começar mais cedo. Esse é o problema. Se quiséssemos que os médicos o utilizassem hoje, teríamos que começar a treiná-los há dez anos, o que significa que para começarmos agora, infelizmente, esses médicos levarão cinco ou dez anos antes de estarem praticando.

Você pode fazer tudo isso em alguns meses porque pode projetar a população. Então podemos dar aos pacientes e médicos um processo de aprendizado experiencial que não é aprendizado de livro, é realmente experiência humana, mas em humanos virtuais que podemos projetar. E podemos fazer isso hoje.

Há muitos desafios práticos de implementação. Havia uma grande barreira comercial. As empresas basicamente diriam, se eu tenho que fazer o teste físico de qualquer maneira, por que fazer o teste virtual? Você está realmente adicionando custos, não tirando custos. Então agora podemos começar a mudar isso.

AIoT Brasil – Quais são as principais barreiras para a adoção generalizada de modelos computacionais na medicina, e como você vê o futuro dessa tecnologia?
Steve Levine – Quando falamos sobre assistência médica, é um mercado muito amplo. Eu gosto de olhar para o ciclo de vida, começando com uma nova técnica ou uma inovação, um novo tratamento, que pode começar no laboratório, e então eventualmente passar pelo processo regulatório, e chegar ao atendimento clínico e a manutenção. Se você olhar para algo como as doenças cardíacas, elas ainda são a principal causa de morte para as pessoas não apenas nos EUA, mas em todo o mundo todo.

Uma das razões pelas quais demora tanto é que o treinamento médico é amplamente baseado na experiência. Você tem alguns anos de aprendizado em livros onde você aprende na sala de aula, e então eles simplesmente o colocam no hospital e você aprende depois de anos de experiência com humanos reais. Bem, se pudermos treiná-los em humanos virtuais, então podemos acelerar esse processo porque eles podem ver um tipo diferente de paciente todos os dias, enquanto hoje para um médico ver 100 tipos diferentes de pessoas com 20 tipos diferentes de condições, pode levar anos.

Você pode fazer tudo isso em alguns meses porque pode projetar a população. Então podemos dar aos pacientes e médicos um processo de aprendizado experiencial que não é aprendizado de livro, é realmente experiência humana, mas em humanos virtuais que podemos projetar. E podemos fazer isso hoje.

AIoT Brasil – Quando será possível termos um gêmeo digital de nossos corpos de forma completa, não apenas com órgãos isolados? E quais serão os benefícios disso?Steve Levine – Cada médico, cada interação que você tem, você tem o benefício de sua vida cumulativa ajustando seu gêmeo para ser como você. Então você poderá testar tratamentos e então falar com seu médico como um parceiro, porque o médico não tem todas as informações, mas seu gêmeo as terá. Conforme você envelhecer, sua saúde se tornará mais importante (geralmente os custos com ela aumentam) e seu gêmeo será mais parecido com você quando você mais precisar.

Atualmente nós temos o oposto. Os médicos sabem menos sobre você porque eles não coletaram essas informações. E você se torna menos confiável ao longo do tempo como paciente porque você passou por tantas coisas diferentes. Ou seja, você pode ter vários especialistas diferentes te atendendo, e eles não falam um com o outro. Todos eles falam com você e você não consegue acompanhar. Então o gêmeo cuidará de tudo isso, criando pacientes virtuais com toda a informação.

Em vez de os ensaios clínicos serem realizados em pacientes reais, usaremos esses gêmeos virtuais e poderemos escolher entre um grupo de gêmeos virtuais que representam uma população real completa, não apenas aqueles que se inscreveram para o ensaio, pois sabemos que não se obtém a mistura heterogênea certa. E temos a questão dos ensaios clínicos em crianças.

No caso da minha filha, ela teve sete marcapassos colocados para manter seu coração batendo. Nenhum deles tinha sido testado em alguém como ela. Todos eles são usados supondo os médicos, e às vezes eles supõem certo, às vezes não. Com os pacientes virtuais, eles podem simplesmente escolher um grupo testá-lo nesse grupo e saber se funciona. Você terá inteligência artificial que dirá que aqui está um tratamento que funciona em pessoas como você. E então você simplesmente vai buscá-lo.

A próxima década começará a fase de implementação. Dito isso, a medicina é um campo muito conservador. Eles só foram, eu não sei como é no Brasil, mas só se tornou digital há alguns anos e, em muitos casos, e eles mal são digitais, décadas atrás de outros setores.

Uma área que é muito interessante para mim (pessoalmente por causa da minha experiência com minha filha), temos trabalhado com um hospital infantil em Boston onde eles já atenderam 1.600 pacientes, crianças, nos últimos cinco anos, realizando cirurgias na criança virtual primeiro, facilitando o tratamento. Aliás, devo fazer uma palestra na faculdade de medicina da USP em breve para falar sobre isso.

AIoT Brasil – Quando você acha que será possível criar um gêmeo virtual, um corpo virtual completo, e qual será o impacto disso quando for possível?
Steve Levine – Bem, é uma ótima pergunta quando você pensa sobre o ser humano inteiro, em parte porque você tem que determinar qual nível de detalhe é necessário. Porque estamos começando a trabalhar com parte, coração, cérebro, pulmão, mas você precisa conectar tudo isso.

Quando você modela um carro você não modela as moléculas de água que estão resfriando o motor, fica apenas no nível mais alto. Então no nível dos modelos do sistema orgânico, acredito que provavelmente teremos isso em cinco anos. Sim, mais cedo do que você pensa.

Já estou trabalhando nisso. Ótimo. E o motivo, e o que aprendi com o Living Heart Project, é que essas informações estão mais disponíveis do que pensamos, mas são massivamente fragmentadas.

É mais uma questão de organizá-las. E então é apenas uma questão de assumir a responsabilidade de organizá-las, e esse é o papel que eu tive, e agora eu fui movido de, agora que temos os modelos de órgãos, o modelo está pronto e essas comunidades estão indo, agora estou passando para o próximo nível e construindo o sistema. E às vezes pode ser um pouco difícil de imaginar.

Assim como construímos o motor faz uma coisa, e a transmissão faz outra, e a direção faz outra, seus órgãos são operações unitárias. Seu fígado faz algo, e é por isso que você pode substituir um fígado por outro, e ele fala com os outros órgãos. Então o corpo tem interfaces padrão entre cada um dos órgãos.

Então tudo o que temos que fazer é mapear quais são esses protocolos de comunicação, e podemos ter um conjunto de padrões de interface para o corpo humano. E sobre o impacto disso corpo inteiro virtual? Então essa é, claro, a parte emocionante, porque ter o corpo é interessante tecnicamente, mas é o que você pode fazer com ele. E eu acho que o que é realmente empolgante é que não há um bom modelo de sistema na medicina.

Se você for ao hospital, você tem os cardiologistas aqui, e os pneumologistas aqui, e as pessoas com diabetes aqui, e as pessoas com câncer aqui, e talvez eles conversem uns com os outros durante o almoço, mas eles não estão raramente se reunindo. Você é quem tem que dizer, oh, vá ver esse médico e veja o que ele diz, e você volta para mim e diz a eles. Nós não praticamos medicina em um paciente.

Nós praticamos medicina no humano decomposto, desconstruído. E então você tem que ir para casa e dizer, você sabe, esse médico disse isso, ou esse médico disse isso. Então seremos capazes de criar um veículo onde os médicos podem praticamente trabalhar em um sistema porque eles não precisam estar fisicamente juntos na mesma sala.

Eles poderão trabalhar no gêmeo virtual. E você poderá realmente coordená-lo porque estará no controle desse gêmeo. E então eu só posso supor que nossa assistência médica ficará muito melhor quando tratarmos o humano como um sistema.

E os médicos apreciarão isso porque em vez de adivinhar o que está acontecendo na outra especialidade, eles realmente poderão testar. Eles não precisam ser especialistas. Se você estiver trabalhando no coração e quiser saber o que vai acontecer se eu fizer uma alteração no coração, como isso afetará os rins, eles podem realmente testar isso agora sem ser um especialista em rins porque o gêmeo terá o rim para dar a resposta.

AIoT Brasil – Como você se sente trabalhando com algo que ajudou a salvar a vida da sua própria filha?
Steve Levine – Essa é uma pergunta fantástica. Minha filha não é apenas a inspiração original por trás do projeto. Sua trajetória de vida tem me ajudado a continuar me inspirando, porque ela não só decidiu entrar na medicina, mas decidiu entrar em uma área muito desafiadora da medicina, como neurologista pediátrica. Ela está ajudando crianças com problemas cerebrais desafiadores. E ela também fez doutorado para que possa avançar nos tratamentos porque sente que está viva porque os médicos, décadas atrás, escolheram descobrir como mantê-la viva.

*O jornalista Daniel dos Santos viajou para Houston a convite da Dassault Systèmes

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#coração#gêmeos virtuais#modelagem virtual#saúde#virtual twins

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